segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Peruana

Cuzco, Peru

Aos 80 anos parou de contar a idade. Ela tinha sempre 80. Que diferença fazia? Estava velha, as escadas custavam a subir, estender lençóis era uma canseira, o apetite era pouco e agradecia todos os dias por aquela coisa grande e ruidosa, que todos os dias lavava a roupa dos hóspedes.
"A vida? Sobre a vida não há nada para contar!" - respondia aos que por ali dormiam.
Ela nasceu e logo começou a trabalhar. Talvez não fosse logo, logo; mas só se lembra de trabalhar. "Siempre!" dizia. Diz que subia as encostas de Cuzco com roupa à cabeça e que quando as pernas falhavam ou a fome apertava, a mãe logo arregalava os olhos e ela seguia caminho. 
Era assim. E a subida continuava custosa, difícil e suada. Mas era assim, para ela e para os irmãos. 
Nem quando mais tarde ia em vez da mãe às grandes casas de Czsco buscar a roupa para lavar ou deixar a roupa já engomada e cheirosa, ela se questionava o porquê de haver meninas de pele clara, com caracóis dourados, a brincarem com bonecas, que seguravam nas mãos macias. As mãos dela eram grossas e duras. Ela vestia a mesma roupa velha e remendada todos os dias, só ao domingo punha a camisa engomada e ia à igreja, com os cabelos negros presos em elásticos grosseiros, numa grande trança. 
Cresceu e sempre foi assim.

Quando o Patrício começou a passar-lhe a mão pela cintura, ela não percebeu o que era aquilo.
Como sempre, olhou para mãe que lhe disse "tu vete!". E ela foi. Ela obedeceu, como sempre.
Casou-se numa capelinha da encosta, antes de Sacsayhuaman com vista para a Plaza Mayor. Quando ela saiu da igreja, com o Patrício pelo braço, ele já ia com um copito a mais. Os poucos convidados, ao escutarem os sinos da Catedral, desviaram os olhares da porta da capela, para o centro de Cuzco, onde uma noiva de pele branca e loira, saía da catedral num lindo vestido branco. Também ela ficou a admirar aquela noiva.
Na primeira noite chorou muito. Aquilo doeu-lhe muito, mas o Patrício disse-lhe "Isto é assim". Ela não sabia se era verdade ou não. Mas há falta de quem obedecer, calou-se perante o tom bruto do Patrício.
Quando anos depois, ele lhe começou a bater, ela não precisou de conselhos. Ela sabia que era assim. Toda a vida tinha escutado o choro das outras mulheres.. Por ali, as coisas eram assim.

Vieram os filhos. Oito. Dois deles morreram. 
Quando os pais do Patrício morreram, o casarão ficou para ela e para o Patrício e transformaram-no numa pensão. Pela primeira vez, sentiu um alívio, ia deixar de subir as ruas de Cuzco. Mas enganou-se, foi só mais trabalho, mais roupa para limpar, mais comida para fazer, mais tudo.

A mãe morreu e muitos anos depois o Patrício. Primeiro o medo, depois a libertação. Pela primeira vez, mandava ela. Ela guardava as chaves, colocou um cadeado no frigorífico e do dinheiro e dos hospedes encarregava-se ela.
Os filhos, os genros, as noras e até os parasitas dos netos viviam agora na esperança que ela morresse. O Pepe queria vender a casa. A Carmen modernizar a pensão. A Tereza falava em abrir um restaurante. O Juan só falava no inglês em computadores. Que raios-os-partam a todos: agora mandava ela. Era assim. Finalmente era assim.
Ah, ela chama-se María Encarnación.