sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Este texto não é sobre a Lola

Valência, Espanha
Todas as terças e quintas-feiras, pelos 6h30, ele desaparecia. Era um bom homem, apesar de calado e reservado e ela gostava muito dele. Quando andavam com o carrinho pela cidade, a recolher sucata de metal, era sempre ela quem falava pelos dois.
Falava dos pais de quem não se lembra e das duas instituições por onde passou. Contava que quase esteve para ser adoptada e perdia-se horas nesse monólogo, falando do carinho que não teve; das roupas bonitas que nunca lhe compraram; da maquilhagem que não experimentou; das saídas com amigos e dos primeiros namorados. Mais do que tudo, lamentava aqueles pais adoptivos que nunca teve. Uma vez esteve quase, mas eles preferiram levar a Lola, que era mais nova do que ela.
Podia ter tido um quarto só para ela, todo cor-de-rosa e cheio de brinquedos e bonecas - quando ela era criança, ela gostava muito de bonecas. Lembra-se dos anúncios na televisão, de bonecas que choravam e riam, comiam e diziam "mamã" e "papá" - ela também sabia dizer "mamã" e "papá", mas não se lembra nunca de o ter dito. De certeza que a Lola disse.
Quando chegou aos 18 anos, não tinha namorado, não usava roupas de marca, nem foi para a universidade. Se aqueles pais a tivessem escolhido... Mas não, eles levaram a Lola e ela ficou lá.
Quando ela teve que sair da instituição, arranjaram-lhe um quartinho barato ali perto e um trabalho num restaurante no centro comercial. De vez em quando, ia à instituição, mas com o tempo começou a ir menos e quando foi despedida não voltou mais.
Foi assim que foi para a rua dormir. E a rua é cruel. Para a Lola, a rua é o que liga os sítios (o cinema, a casa, a praia,...), mas não para ela.

Ela conheceu-o numa noite de Inverno, ele viu-a do outro lado do vidro, à chuva e como ela não parava de olhar, ele abriu a porta pesada que dava entrada para o multibanco e nessa noite, ela partilhou o cartão dele e os dois dormiram de costas voltadas, mas juntos para se protegerem do frio.
Nos dias, nas semanas e nos meses seguintes, ela ia sempre com ele. E não, não iam juntos; mas sim, ela ia com ele.
Ele era mais velho do que ela  50? 60?. Falava muito serenamente e era muito educado. Quando encontravam um jornal, ele lia-o e explica-lhe o que era a bolsa e as acções.  Ela queria saber mais sobre ele, quem era, o que fazia, porque estava na rua, se tinha mulher ou filhos. Ele sorria e por vezes respondia: "passou-me a vida por cima!". Uma vez passaram por um edifício de muitos andares e ele disse-lhe "Eu antes trabalhava ali. Lá em cima, no mais alto de todos!" Ela fazia mais perguntas, mas ele não respondia. E então, ela continuava e falava dela e da vida da Lola, que afinal poderia ser a sua.
Mas apesar de vaguearam juntos, todas as terças e quintas-feiras, pelos 6h30.

Um dia, encontrou-o por acaso. Estava na ponte do Parque Central e nem deu por ela. A mão dele tremia e apoiava-se ao carrinho, com força. Debaixo da ponte, no campo de futebol do parque, um grupo de raparigas tinha treino de futebol e corriam atrás da bola, enquanto um homem ia gritando com elas. Nos bancos, muitos pais batiam palmas e torciam pelas filhas.
Desta vez ela não falou, até que ele tirou a mão do carrinho e apontou para uma adolescente de cabelos encaracolados e disse: "Aquela é a minha Lola".