segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Sobre o sagrado #jesuischarlie


Sou pessoa para achar que se pode fazer piadas com tudo: criancinhas, cancros, a morte, etc.
Acho que no humor vale tudo. Se é bom, rio-me. Se não achar piada, sigo com a vida. Não reclamo, nem me insurjo.
Entendo as pessoas que reclamem. O bom da comédia é que muitas vezes nos faz parar e pensar "porra, eu faço isto" e nem todos gostam de realizar uma auto-crítica, quando é suposto estarem a rir.
Na maioria, as pessoas levam-se demasiado a sério.
Outros ou os mesmos, simplesmente defendem que há assuntos com os quais não se fazem piada e ponto final.

Quando na semana passada, 12 pessoas morreram em Paris, por causa de um cartoon, fiquei chocada. E fiquei sobretudo muito zangada - o acto de alguém tirar vida a outro alguém propositadamente, causa este efeito em mim.
Acredito que muitas pessoas que ontem se manifestaram em Paris, possivelmente não achavam muita piada à revista Charlie Hebdo, nem aos cartoons publicados. Elas simplesmente acreditaram que deviam manifestar-se em prol de algo mais importaste do que o humor: o direito à liberdade de expressão, essa coisa tão essencial em democracia. E é bonito ver tamanha solidária, numa época em que andamos todos tão descrentes.

El coche de Intisar

Este fim-de-semana li um livro chamado "El coche de Intisar" de Pedro Riera e Nacho Casanova. Uma banda desenhada que em 2013 ganhou o prémio France Info, para o melho Comic de Actualidade e Reportagem (recomendo!).
Tudo começou quando Pedro Riera foi para o Yeme, viver durante um ano devido ao trabalho da sua companheira.
Também graças a ela, foi tendo conhecimento e contacto com algumas mulheres e histórias, nas quais se inspirou para escrever o livro.
É um bom livro, dá para pensar, valorizar, mas é também simples e divertido, com algumas situações quase anedóticas.

Num dos capítulos, a personagem principal conta que sempre que tem oportunidade, gosta de falar com estrangeiros (ocidentais) sobre a sua visão sobre o Yemen, religião, etc. E refere que sempre que pode, pergunta sobre os cartoons de Maomé desenhados na Dinamarca.
Ele não é radical, nem defende a violência praticada contra os cartoonistas, nem acha que devem ser castigados. Ela simplesmente não entende (e ao que parece que nunca ninguém lhe conseguiu explicar) o porquê e a "nossa" insistência em desenhar algo tão sagrado para milhões de pessoas no mundo. Ela explica que esses desenhos são como "se a nossa mãe nos cuspisse na boca".
No final, ela conclui que ou "nós" não temos nada tão sagrado e intocável ou que para "nós", a única coisa realmente sagrada é a liberdade de expressão.
Eu vou pela segunda.

Este capítulo fez-me pensar na comunicação surda em que vivemos - e atenção, óbvio que NADA justifica este ou qualquer acto de terrorista.
Lamento sinceramente a morte de qualquer tipo de terrorista, que logo passam a ser vistos como mártires e glorificados, quando o destino devia ser a prisão.

No Ocidente, islamismo, cristianismo, judaísmo, etc. são religiões que há muito que perderam o lugar de primário e de sagrado na vida de cada um e/ou na sociedade. É claro que ainda há quem se indigne com sátiras feitas ao Papa, mas daí a colocar bombas vai um passo.

Acredito que nenhum dos cartoonistas assassinados teve alguma vez como objectivo ofender os muçulmanos ou as suas crenças de uma forma tão profunda.
Todos os dias, humoristas e não-humoristas fazemos uma auto-censura. Sim, tudo pode ser divertido, mas há 2983 mil e uma coisas com as quais não escutamos/fazemos piadas. Assim de repente, nunca ouvi um humorista usar a palavra "preto" numa piada sobre alguém de raça negra (posso estar enganada).
Representar Maomé ou Alá é uma forma simbólica de representar as instituições, os fundamentalistas que agem em nome da religião e da fé para justificarem terror ou a fé.
Será que se optassem por uns minaretes não teriam conseguido o mesmo efeito?

Eu também acho que somos todos Charlie e acredito profundamente que todos os dias podemos e devemos lutar em prol das nossas convicções e pela liberdade de expressão. Admiro também os trabalhadores do Charlie Hebdo, que nunca desistiram do seu trabalho e não se acobardaram face às ameaças de brutos ignorantes e mesmo rescindindo das suas liberdades (um tinha segurança) continuavam a trabalhar no que acreditavam.
A mim, só me preocupa este nosso autismo mutuo. Até quando?