segunda-feira, 2 de março de 2015

Joana, a operadora de call-center

OK, perdido por cem, perdido por mil. Joana enviou o seu cv para o call center, não tinha nada a perder. E isso não significava que ia deixar de sonhar. Um dia seria psicóloga, mas agora era mais importante pagar o quarto. Voltar para casa dos pais não era opção.

Ficou surpreendia com a rapidez com que responderam. Dois dias depois foi feita uma pré-entrevista, com dinâmicas de grupo. Sacou a psicóloga dentro dela e mostrou-se firme, sem ser inflexível. Joana comportou-se como uma líder, capaz de ouvir os outros, mas ao mesmo tempo determinada.
Na entrevista seguinte, sentiu-se confiante, o que se traduziu numa contratação.
Explicaram-lhe que haveria um mês de formação com um salário um pouco inferior ao salário mínimo. Só depois de passar essa formação, seria contratada. Joana arriscou. Não tinha nada a perder. Prometeu aos pais que seria o último mês.
Esforçou-se muito, estudava em casa, lia os protocolos, estava atenta na formação.

A formadora irritava-a. Uma licenciada em história que começava as frases por "é assim" e dizia "prontos", Trabalhou no call center dois anos e há dois meses dava formação. Todos diziam que era namorador do formador.
Joana ficou aliviada quando soube que ia ser contratada. Quando viu o contrato, até se emocionou. Tinha começado a acreditar que eram miragens. Os valores não eram altos. Ia receber o salário mínimo, mais subsídio de alimentação e bónus. Com sorte chegaria quase aos 700 euros. Naquele momento parecia uma fortuna. Ficou surpreendida, quando leu o nome do empregador. Um colega explicou-lhe que eram subcontratados, na verdade quem os empregava contratualmente era a empresa de trabalho temporário que fez a entrevista. Detalhes, pensou a Joana.
Surpreendeu-a também ver que do curso de formação, todos tinham passado. Excepto três que tinham desistido a meio. Joana sentia-se confiante, mas sabia que muitos ali não eram como ela.

Nos dois primeiros meses logo se apercebeu que não estava minimamente preparada.
Havia tanta coisa que não sabia! Tinha que estar a pedir apoio constantemente. E a ajuda tardava e enquanto isso o cliente em espera. Só um momento, por favor. Só um momento, por favor. Só um momento, por favor. E depois havia a pressão do tempo! As constantes avaliações, discurso positivo, não digas "problemas", fizeste mal, oferece-lhe este pacote, o desconto não se aplica a este cliente, manda-os para o Apoio Técnico (mas eles que liguem, para paga a chamada), não fales dessa alínea,... E depois o ruído, tanto barulho. Tanta gente!
Joana esforçava-se por cumprir as regras, seguir os procedimentos e conseguir o bónus. Eram mais 70 euros! Já pagava o passe!

Tal como o mês da formação, Joana ia para casa e agarrava-se ao computador, enviava cv's e procurava, procurava.
Aos almoços foi começando a conhecer melhor os colegas. Apesar do subsidio de almoço, todos traziam comida de casa. Havia muitos licenciados em psicologia, assim como enfermeiros ou engenheiros. Bem na verdade, eram apenas licenciados, já que nunca nenhum trabalhara realmente na área. Muitos viviam com os pais. Muitos estavam ali há meses e já tinham deixado de procurar. Nem valia a pena! Além disso, ali ganhava-se fixe, argumentavam.
Havia também mãe, sim, sobretudo mulheres, que baixavam os olhos. Joana pensava que para elas, com filhos para criar, 700 euros não podia ser ganhar fixe!

E ela, ela Joana?
O que é que ela fazia ali?
Nos três primeiros meses, os quase 700 euros ajudavam-na a suportar o trabalho. Pela primeira vez, era independente financeiramente. Comprou as botas que sempre quis. Chegou a um altura que o trabalho virou rotina. Um dia, Joana deu-se conta que há já uma semana que não procurava anúncios. Estaria ela a desistir de si mesma? Estava resignada?
Joana sabia que se se esforçasse como até ali, em dois anos ou menos poderia subir de posto. Ela era diferente dos outros. Podia até ser formadora. Ela sabia que davam preferência aos de dentro. Sempre seria algo mais relacionado com a área dela e o salário era um pouco maior. Por que não fazer carreira?
Relacionando-se mais com as pessoas certas e com a atitude correta, sem dúvida, que ela podia chegar lá.

Que mais podia ela fazer?





Joana, a estagiária de Psicologia

Joana foi estudante de Psicologia na Universidade de Coimbra.

Depois de dois estágios, deixou de acreditar nas promessas, de que três meses depois passaria a contrato.
Joana não sabia o que fazer mais! No segundo estágio, chegou a trabalhar seis dias à semana. Era sempre a primeira a chegar à clínica e sempre que lhe pediam fazia um turno mais, ela fazia.
Um dia trabalhou doze horas e sem reclamar.
Fez os relatórios todos que a responsável da clínica pediu, inclui todos os detalhes. Como sempre, foi proteccionista e detalhista, e nunca disse um "ai".
Quando directora clínica lhe disse que não poderia contratá-la como planeado, Joana ficou sem chão. A directora foi sincera, disse que lamentava muito, que o trabalho dela era excelente, não tinha nada a apontar, mas que naquele momento, não tinha verbas e não podia contratar mais ninguém.

Quando uma semana depois, a Joana viu o mesmo anúncio que vira três meses antes e da mesma clínica que acabara de a rejeitar, uma raiva enorme apoderou-se dentro dela. Teve vontade de ir para a porta da clínica e avisar os entrevistados que jamais conseguiriam um trabalho efectivo. Dizer que ali só queriam trabalho gratuito e explorar pessoas, que como ela, tinham acabado o curso. Eram uns exploradores. Joana sentia-se enganada, ela que sempre fora tão razoável, sentia-se capaz de ir falar com aquela directora e abaná-la!

Quando estava na clínica, tinha ouvido uns "zum-zuns" que já antes dela, tinham estado duas outras estagiárias, também à experiência. Claro que Joana não quis acreditar.
Aliás, se calhar até era verdade, mas com ela seria diferente. De certeza que as outras duas não eram como ela. Quem mais trabalharia doze horas ou seis dias por semana, sem se queixar?! Mais ninguém! Ninguém era assim tão empenhado.

Mas agora ali estava ela! E todos os dias ela se arrastava até ao computador e procurava anúncios. Enviava cv's voluntariamente. Escrevia cartas de motivação. Procurava  novos sites. Joana já não sabia que palavras mais combinar no Google "Trabalho psicólogo / Emprego psicologia / Vagas para psicólogos".

O mês estava a terminar e ela não tinha coragem de pedir mais dinheiro aos pais para pagar o quarto - afinal, mesmo com despesas pagas, eram 300 euros!
Como era possível que aquilo lhe estivesse a acontecer? Ela que tinha sido uma das melhores alunas da turma!

Quando o curso acabou, um professor chamou-a para trabalhar na universidade, ajudando-o. Foi esse o primeiro estágio, os pais ficaram super orgulhosos. Caramba! Uma filha  trabalhar na Universidade. E tão nova!
Joana também se sentiu orgulhosa, afinal não era qualquer um que recebia aquele tipo de convite! E todos os dias lá ia ela, analisar estatísticas, reescrever entrevistas, pesquisar documentos,... Até os trabalhos mais aborrecidos, Joana fazia com empenho e dedicação. O seu sonho era exercer, mas quem sabe se uma carreira académica não era a melhor opção?

Outros colegas do curso, continuavam a procurar trabalho. Uns pareciam desistentes, uns loosers, que voltavam a casa dos pais ou preparavam cv's para entregar no Pingo Doce, dizendo que tinham só 12º ano. Diziam que preferiam não recrutar recém-licenciados, pois esses, assim que tinham trabalho pisgavam-se. As pessoas desistiam à primeira, não podia ser, pensava Joana, que o mercado de trabalho não era para meninos!

Um mês, três meses e ao quinto mês, a Joana ganhou coragem e foi falar com o professor.
Pensou nos pais e na coragem deles, quando lhe disseram que não podiam continuar a pagar o quarto. Eles tinham razão, coitados, 150 euros de ajudas de custo não davam para pagar o quarto. Pagava o passe, a comida e a custo! Joana compreendia os pais e sabia o quão difícil aquilo foi para eles.
O professor compreendia, mas infelizmente com os cortes orçamentais, o departamento não podia pagar mais. A Joana também compreendia.

No dia em que arrumou os seus papéis, chorou de raiva.
Dias depois e quando tudo parecia perdido, uma entrevista.
Na perspetiva de Joana, a entrevista tinha corrido super bem, apesar dos nervos e, como por magia, ela conseguia um trabalho numa clínica de psicologia. Crise? Qual crise? Os colegas dela não andavam a procurar bem, com certeza!
A diretora tinha sido super simpática e explicou tudo a Joana. Os primeiros meses seriam à experiência, ou seja, não poderiam pagar-lhe, mas depois e se tudo corresse bem, ela ficariam. E seriam só três meses que ali ninguém explorava ninguém!

Era assim o processo. Era assim que se faziam as coisas, explicou a Joana aos pais. Os pais entenderam e apoiaram a filha, mais uma vez! Apoiar significava também pagar. Só mais um esforço. O último sacrifício.

E agora isto!
O mês acabar!
O quarto por pagar!
A caixa de email sem respostas!
Por que é que não respondiam? Nem que seja para dizer não?
Já não havia mais latas de atum e os cereais estavam a meio!