sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Os vizinhos



Aquele, não era um parque bonito. A relva estava gasta e havia muitos espaços com a terra seca, que faziam linhas, que se cruzavam, como se a terra ruísse. Mesmo assim, no meio de todos aqueles prédios, todos iguais e de janelas pequenas, aquele era o único parque.
Pela manhã, alguns velhos dromitavam ao sol. À tarde, algumas crianças brincavam nos velhos baloiços, já sem cor e muita ferrugem. Pela noite, só mesmo uns grupos de jovens é que por ali se reuniam e ao som de música, fumavam os cigarros comprados à socapa e bebiam litronas. Havia quem passeasse os cães, mas poucos.

Um dia ele viu-a e ela viu-o também. A viver naquele bairro desde que nascera e a trabalhar duas ruas abaixo, reconhecia uma cara nova à distância. Ela sorriu-lhe, mas virou a cara, puxando o rafeiro pela trela. Mesmo assim, ele ficou contente, há já muito tempo que ninguém lhe sorria e baixou-se para pegar a caganita da cadela, com o saco de plástico na mão. Odiava aquela a cadela e limpar a merda dela, humilhava-o ainda mais. Ele nunca quis a bicha. Era minúscula, ridícula e latia sem parar. Sentia-se um pateta ao lado dela. Menos mal que agora não usava aqueles lacinhos e casaquinhos que a ex-mulher insistia em colocar na bicha.
Quando a mulher o deixou, ele ainda pensou em vingar-se, abandonando a cadela, mas não teve coragem. Em vez disso, pegou-a entre mãos e elevando-a à altura dos olhos disse-lhe: "Acabaram-se as mariquices!".
Para ele acabaram-se também as comidas de dieta. E mudou de casa, para uma casa que podia pagar e mais perto do trabalho.

Passadas três semanas e várias saídas frustradas, a mulher entendeu por fim a que horas ele passeava a cadela e passou a ir a esse horário também.
Nas semanas seguintes, nem se atrevia a olhá-lo. Era só o que faltava e que o atrevido pensasse que ela estava interessada. Ao mesmo tempo, a sua cabeça e o seu coração fantasiavam com frases românticas, gelados a dois e flores no escritório.

Quando ele por fim falou com ela, ela fez-se cara e respondia-lhe em monossílabos.
Ele dizia que a cadela dele precisava de amigos e que a bicha parecia simpatizar muito com o cão dela. Ela acabou por concordar.
Já os cães, estes nem se cheiravam. O Tobias era um rafeiro, já cego e sem pêlo, que em tempos fora um bom ajudante de caçador. O Tobias era o filhos que ela nunca pôde ter e a única recordação viva que lhe restava dos pais já mortos.
Só aqueles dois poderiam imaginar um romance entre aqueles dois animais.

Conversa puxa conversa e os passeios alongaram-se, por vezes sentavam-se cinco minutos no banquinho de madeira descascada e falavam do tempo, sempre imprevisível ou do país, que ia sempre muito mal.
Um dia ela não se apareceu. Nem no seguinte.
Ele preocupou-se e, sem se dar conta, procurava-a.

Quando ela apareceu, ela explicou que tinha tido uma gripe e ficou de cama, mas que agora estava melhorzinha, com a graça de Deus. E isso era o que importava e que até já tinha ido trabalhar naquele dia, que o consultório do Dr. Antunes sem ela, ficava de pantanas.
Foi aí que ele respirou, ganhou coragem e lhe pediu o número. Ela imaginou os dois em Belém, a comer pastéis e a passear de mão dada, mas disse que não.
Ele falou do Tobias ("e se lhe volta a acontecer alguma coisa, quem passeia o Tobias?"). Ela não gostou de ver a solidão dela assim tão exposta e ele contra-argumentou de como a cadelinha ficara triste nesses dias de ausência, parecia até deprimida, nem comia a pobre. Foi, assim, que ela afagando a cadelinha, acabou por assentir e dar-lhe também o número do trabalho.