quarta-feira, 23 de julho de 2014

Maria do Carmo, do Estoril

Estoril, Portugal
Ela chama-se Maria do Carmo, tal como a avó paterna, que a obrigava a beber chá de costas muito direitas, ao primeiro sábado de cada mês. Ela nunca diz o apelido, porque só ele já a esmaga, tal o peso dele.
Maria do Carmo há 20 anos que não consome qualquer tipo de droga. “Estou limpa” diz. E não há qualquer tipo de orgulho na sua voz. “Estou limpa” diz apenas.
“Limpa”, ela vive sozinha, numa casinha pequenina. É um terceiro andar com sardinheiras vermelhas à janela, em Campo de Ourique. A casa tem só um quartinho. “É pequenina, mas muito limpinha” diz Maria do Carmo com orgulho, enquanto me oferece uma xícara de chá.
Em cima das rendas da cómoda tem três fotografias. Numa vê-se a Maria do Carmo que tenho ao meu lado, nos jardins dos Jerónimos. Ela recorda-se dessa tarde de Junho, em que foi com uma amiga “comer um Pastel de Nata".
Na outra foto está uma Maria do Carmo muito mais nova e bonita. Vê-se-lhe o cabelo castanho claro, com ondas, caído nos ombros. O vestido vermelho é simples e assenta elegantemente àquela Maria do Carmo, que tem à sua frente uma mesa farta de bolos e bolinhos e porcelanas, com rebordos dourados. Ao seu colo, um bebé de roupa de marinheiro e ao seu lado, uma menina muito séria, de cor-de-rosa e lacinhos.
Na terceira foto estão dois jovens, já adultos. São "os meus filhos", disse-me ela.

Num passado muito lá atrás, Maria do Carmo teve tudo.
E teve uma paixão e pela qual “feztudo”. Uns charros, umas snifadelas e depois a heroína. Pelo meio, muitas discussões . A mãe fechada no quarto em silêncio e o pai aos gritos por não aprovar aquela paixão. Ao que Maria do Carmo respondia. “Eu fujo papá!”.
Houve até um casamento, com uma barriga enfaixada, celebrada com chutos de heroína, na casa do Estoril.
Mais tarde mais gritos. Até o silêncio da mãe se tornou ensurdecedor! Até que nasceu a primeira filha, a Maria Paula, uma bebé muito magrinha e muito chorosa.
Houve um dia em que o anel de diamantes da mãe desapareceu e a Maria do Carmo jurou a pés juntos que não era culpa dela. Foi a Luisinha, empregada da casa há mais de trinta anos que acabou culpada... e despedida.
Depois nasceu o Artur, ainda mais pequenino e prematuro. Mas desse tempo Maria do Carmo já não se lembra de muita coisa. “Dormíamos no chão, já não tínhamos cama. Tudo o que podia ter sido vendido, já tinha sido”.
Um dia, a Maria do Carmo  voltou ao andar onde vivia e os filhos não estavam. O pai de Maria do Carmo levara-os. “Eram crianças muito caladas, eu acho!”.
A sua grade paixão trocou-a definitivamente por outra começada por “H” e um dia, ele não voltou para casa. Maria do Carmo não se lembra da última vez que o viu ou do que falaram. “Estávamos os dois demasiado metidos na heroína. Se calhar, ele até se me disse adeus! não sei!” conta Maria do Carmo.

Todos já se tinham ido. A ela, só lhe restava a heroína e logo depois a rua e depois roubar e depois mendigar. Chegou uma altura em que nem roubar podia: “Fisicamente estava numa lástima,  todos me olhavam quando eu entrava numa loja! Eu era muito suja”.

Enquanto isso, os filhos cresciam, com uma mãe que aparecia aos domingos. “Estava meses sem ir. E eles sempre lá, à minha espera, limpinhos. Quando eu chegava o meu pai obrigava-me a tomar banho e a empregada vestia-me. A minha mãe nem vinha mais. Ela, coitadinha, não aguentava. Era o meu pai quem ficava comigo e com as crianças. Os quatro: calados no jardim! Eu não podia nem entrar em casa.”

“É por isso que eu agora não os quero ver. Fiz-lhes muito mal. Não fui má mãe, porque nunca cheguei a ser mãe. Eles estão melhor sem mim. Estamos todos melhor assim.” conclui ela.

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